domingo, 16 de julho de 2017

Gravador de rolo Nagra IV-STC

Olá leitores e fãs de nosso Blog! Hoje temos uma restauração uma restauração diferente, pois chegou até nós um gravador de rolo Nagra!

Vou iniciar este post falando um pouco sobre o retorno dos magnéticos, ou talvez sua redescoberta no Brasil.

Gravadores de rolo sempre tiveram seu espaço em estúdios, para gravação e produção de masters. Não havia uma forma prática e de qualidade para se gravar áudio antes do surgimento dos meios magnéticos... grandes talentos não podiam ser facilmente gravados ou apresentados ao público pela falta de uma forma simples e barata de se gravar! Existiam os rolos de Edson e os discos de Shellac, mas nenhum desses meios era prático para se gravar ou regravar, até o surgimento dos meios magnéticos. Quando finalmente surgiram os gravadores em rolo, tornou-se fácil não apenas as produções profissionais, mas também gravações amadoras, sejam elas caseiras ou semi-profissionais. Os gravadores de rolo promoveram uma verdadeira revolução na música, seja em casa, nos estúdios ou nas rádios! Até hoje ainda existem muitos estúdios que querem aquele som quente e analógico, e para isso utilizam gravadores de rolo. Como bem sabemos, estes aparelhos também são muito amados por audiófilos, graças a sua qualidade ímpar. Como diz um amigo meu: 'Não existe sonoridade melhor que aquela dos meios magnéticos'.

Já há algum tempo os gravadores de rolo voltaram a despertar o interesse global, chegando ao ponto de considerarem o rolo como 'o novo vinil'. Recomendo aos nossos leitores que leiam estes dois artigos:



Este novo despertar dos gravadores de rolo trouxe até nós um gravador de rolo Nagra, modelo IV-STC. Para quem não conhece, estes pequenos e notáveis gravadores eram usados principalmente em gravações de áudio para filmagens, onde se exigia portabilidade, alta qualidade, e sincronização com vídeo. O Nagra IV rapidamente achou seu lugar neste meio, tendo sido muito utilizado ao redor do mundo. Hoje em dia, os Nagra passaram a ser desejados por audiófilos graças a suas enormes qualidades construtivas e por sua doce e maravilhosa sonoridade.

Se querem ter uma leve ideia da qualidade destes gravadores, basta reparar que os guias por onde passam as fitas são feitos em rubi. Sim, rubi, a pedra preciosa, para o menor atrito possível. A Nagra não poupou gastos no projeto dos Nagras. Rubis foram usados em relógios por séculos, como mancais de baixo atrito para os diminutos eixos das engrenagens. É claro, apenas relógios de grandes marcas usam rubis em suas máquinas, assim como a Nagra usou enormes rubis em seu maquinário de gravadores de rolo.

Pois bem, hora de prosseguirmos com nossos trabalhos... este é o Nagra que recebemos.

Nagra IV-STC

O aparelho só tinha problemas rs... não gravava, não reproduzia, mecanicamente o sistema de transporte não travava corretamente. Bem, ele ligava, mas só. De antemão já sabíamos que este Nagra tinha passado por outras mãos, que não conseguiram repará-lo. Muitas vezes a necessidade de peças raras torna os reparos financeiramente proibitivos. Será que seria este o caso aqui? Vamos descobrir.

Assim como em qualquer tipo de equipamento, o reparo em gravadores de rolo tem de seguir um certo planejamento básico: primeiro deve-se verificar e reparar os problemas mecânicos, para em seguida prosseguir-se às análises e reparos dos problemas eletrônicos. Já sabíamos que este Nagra apresentava ambos problemas, então iniciamos nossos trabalhos corrigindo as falhas mecânicas.

Falhas mecânicas

O Nagra, como o recebemos, não apresentava correto acoplamento da cinta da fita magnética com o cabeçote de gravação. Visualmente já identificávamos este problema, que era bem óbvio! Inspecionamos toda a mecânica e não encontramos nada faltando ou danificado... só nos restou acreditar que alguém já havia desmontado o aparelho antes e remontado sem o correto sincronismo do mecanismo interno.

O jeito é desmontar tudo! Começar do zero. Iniciamos removendo as correias e o motor.

Motor removido

Em seguida, prosseguimos removendo as outras polias e a cobertura do mecanismo de sincronismo.

Desmanche do sistema mecânico

Desmanche do sistema de alavanca

Desmanche da polia principal

Desmanche da proteção do sistema de sincronismo

Depois de desmontar todo o sistema mecânico, esperávamos ver um erro na montagem das engrenagens de sincronia, erro este que só poderia ter sido causado por algum curioso que trabalhou no aparelho antes de nós. Era a única explicação plausível para a falha que estávamos vendo...

Sim, definitivamente alguém desmontou e remontou tudo errado! As marcas vermelhas nas engrenagens da foto abaixo indicam como estavam as engrenagens antes do reparo. As marcas vermelhas se tocavam, o que é incorreto. O sincronismo correto é feito a partir de pequenos furos demarcados pela fábrica.

Sistema de sincronismo

Veja abaixo em detalhe as marcas de sincronismo de fábrica, e as engrenagens já removidas e reinstaladas em sua posição correta.

Sincronismo corrigido

Bem, agora o transporte funcionava adequadamente: bom wrap nas cabeças, velocidades, avanço e retrocesso em bom funcionamento. Já temos um aparelho em um estado que nos permite ir em frente para os reparos eletrônicos.

Falhas eletrônicas

Claramente estávamos lidando com um equipamento que passou pelas mãos de curiosos. Nesses casos, já sabemos que vamos encontrar muitos problemas ocasionados por terceiros, defeitos estes que não encontraríamos naturalmente em um aparelho original que apenas deixou de funcionar. Este aqui deixou de funcionar e foi totalmente fuçado, até que desistiram e deram o aparelho como irreparável.

Já sabemos que o aparelho não grava nem apaga as fitas nele colocadas. Claramente há algum problema no circuito de bias. A placa de bias foi  removida e avaliada.

Conseguem ver o problema? Tentem decifrar o que está errado na placa abaixo. É algo bem óbvio, mesmo para um olho destreinado...


Placa de bias

Se não acharam o erro, reparem bem abaixo do transformador de bias, a peça quadrada com vários pontos de solda... logo abaixo dela, faltam dois transistores! Exatamente os transistores de bias! Bingo. Novos transistores teriam de ser encomendados e instalados. Neste ponto do reparo, um técnico desavisado provavelmente apenas os substituiria por qualquer outro e pronto, imaginaria ter reparado o problema. Mas como somos experientes nestes restauros, já sabemos que se estavam faltando, tem algo errado...

Para prosseguirmos, é preciso antes:

1 - Encontrar o manual de serviço e descobrir quais os transistores originais usados. Não, não usaremos qualquer transistor. Manter a originalidade é essencial
2 - Descobrir porque deixaram a placa sem transistores. Provavelmente eles foram danificados por algum motivo, e o problema não deve ter sido sanado, já que não simplesmente substituíram por outros. Minha voz da experiência me diz que tem algo errado aqui!!

Bom, vamos nos concentrar no problema 1 inicialmente. 

Encontrar manuais de serviços hoje em dia deveria ser algo simples, e muitas vezes gratuito. Os manuais em grande parte já foram disponibilizados na internet por pertencerem a aparelhos descontinuados há muitos anos. No entanto, não existe manual de serviço disponível para os Nagra IV na internet (podem tentar achar!!). Não me restou opção senão entrar em contato direto com a Nagra.

Fomos surpreendidos pela notícia de que o manual de serviço não está disponível porque a Nagra ainda faz a manutenção nestes aparelhos!! Incrível! Mesmo após tantos anos, ainda existe demanda de uso e reparo destes gravadores. Esta foi uma boa e interessante notícia, mas a segunda notícia não era nada boa... a Nagra não mais vendia os manuais do modelo IV-STC. Até alguns anos atrás, era possível a compra do manual por pouco mais de 500 reais (um pouco caro, mas justificável). Infelizmente, já há alguns anos o manual não era mais comercializado.

Tive de trocar muitos e-mails para tentar achar uma solução, pois o manual de serviço era essencial ao reparo! Nos apresentamos como uma empresa especializada em reparos de vintage no Brasil, e conquistamos a confiança de quem nos ajudaria! Não, eles não nos venderiam o manual, mas pela metade do preço, abririam uma exceção e nos forneceriam acesso online ao manual em um de seus servidores. Era o suficiente para este reparo, e agradecemos pela ajuda :)

Bom, em frente. Já sabíamos qual transistor usar, mas permanecia a dúvida, porque quem fez o reparo antes não trocou os transistores, mas simplesmente deixou faltando? Esse tipo de situação sugere a um reparador experiente, que:

1 - Deve existir outro problema, que não foi solucionado. Os transistores ficaram queimando e o curioso simplesmente desistiu, deixando sem eles, para que o aparelho pelo menos ligasse.
2 - Se este era o caso, provavelmente acharíamos indícios de que o curioso trocou os transistores diversas vezes sem sucesso. Será? Vamos investigar...

As placas do Nagra são bem robustas, mas poderiam apresentar sinais de desgaste ou fluxo de solda dependendo da habilidade do curioso que trabalhou neste aparelho. Vamos ver.

Placa de bias - trace side

Vejam só! O curioso não apenas deixou marcas... ele destruiu as trilhas da placa de tanto que soldou e dessoldou os transistores, e no fim desistiu e deixou sem eles! Ele deve ter queimado pelo menos uma dúzia de transistores neste aparelho pelo visto.

Isso me indica que há um curto. O curioso não percebeu, e só viu que quando instalava os transistores, algo dava errado e o aparelho nem mesmo ligava (queimando o fusível) e rapidamente os transistores queimavam novamente. Ele acabou desistindo (depois de destruir a placa) e largou sem os transistores. 

Resolvi testar a teoria do curto, e, certamente, encontrei um curto direto ao ground na saída da placa de bias. Dada a lastimável situação do aparelho, resolvi continuar a análise visual do aparelho em busca de problemas óbvios para um olho treinado. Em poucos minutos achei alguns jumpers de configuração da placa de bias em desacordo com o manual de serviço.


Jumpers de bias

Os jumpers estavam configurados errado, mas isso não explicava o curto. Bem, de toda forma foram reparados... menos um defeito. Mas e o curto? Vamos por partes. O curto está na placa ou no resto do aparelho? Resolvi testar a placa individualmente conectada a uma fonte de bancada: tudo funcionou perfeitamente. o defeito estava no resto do aparelho! Poxa, agora complicou... já sei porque desistiram. Agora seria um desafio: existe um curto que pode estar em qualquer lugar do aparelho! Hora de inciar o tedioso trabalho de desmontar toda a eletrônica, isolar todos os componentes, e testar cada módulo individualmente até o problema ficar evidente.

Muitas horas de testes e muito suor depois... defeito encontrado! Existe um curto no sistema de timecode. uma análise ainda mais criteriosa revelou que um cabo coaxial oxidou internamente e entrou em curto, Um defeito dificílimo de se achar!! 

Conector com curto em um dos coaxiais

Conector desmontado para troca do cabo em curto

Ufa, curto misterioso solucionado! O problema de bias estava resolvido, mas haviam outros problemas a serem solucionados antes de um teste.

De cara, percebemos fios soltos e componentes pendurados. Acho que o curioso que trabalhou neste aparelho desistiu pela metade e devolveu ao dono pior do que recebeu!

Fios soltos

Mais uma consulta ao manual de serviços e descobrimos para onde esses fios deveriam ir. Um deles deveria estar conectado ao fusível, que foi removido completamente do circuito. Lembram-se da teoria de que o aparelho estava com a placa de bias em curto e queimando fusíveis? Este achado confirma esta teoria. Ok, tudo pronto hora de um teste!

Aparelho reconectado


Testes preliminares após reparos

Funcionou! Muito mal, mas funcionou. Neste ponto já sabíamos que o aparelho estava com todos os sistemas básicos funcionais, mas necessitava de uma reforma geral: troca de componentes fora de tolerância e recalibração geral com auxílio do manual de serviço! Mais umas 16h de trabalho e finalmente, tínhamos um Nagra em perfeito estado funcional em nossa bancada! Veja no vídeo abaixo nosso teste final do aparelho.






Espero que tenham gostado deste reparo! Este é um aparelho raro e merece uma restauração à altura. Um abraço meus amigos e até a próxima!